O cabelo castanho ondulado está preso atrás da cabeça e seguro por alguns ganchos. Há base a mais no rosto, mas não chega para disfarçar as borbulhas, principalmente nas bochechas. Um brinco enorme cai da orelha direita e roça o longo cachecol escuro que cai até aos joelhos. Quando se senta e cruza as pernas, recostando-se no sofá à procura de descanso, uma das botas castanhas fica suspensa no ar e a outra firme no chão. Os olhos azuis também parecem flutuar, como se num momento estivessem ali, naquela sala com vista para a serra, e no outro já não. Acabou de coçar o queixo e tossiu um pouco. Como é que eu, Xana, rapariga bonita que teve o mundo ao alcance das mãos, cheguei aqui?
O caminho seria sempre o mesmo, estivesse o mapa aberto sobre uma mesa ou apertado nas costas de um punho fechado. É uma linha recta que se percorre em corridas rápidas, cada vez mais frequentes e cada vez mais rápidas, ficando cada vez mais longe do ponto de partida sem, porém, estar mais perto do ponto de chegada. Uma estrada para lugar nenhum na qual se move uma massa de corredores solitários, pouco preocupados com quem vai ao lado. No último mês, de acordo com Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT), um milhão e meio de pessoas tirou bilhete de ida nessa viagem chamada cocaína.
O caminho seria sempre o mesmo, estivesse o mapa aberto sobre uma mesa ou apertado nas costas de um punho fechado. É uma linha recta que se percorre em corridas rápidas, cada vez mais frequentes e cada vez mais rápidas, ficando cada vez mais longe do ponto de partida sem, porém, estar mais perto do ponto de chegada. Uma estrada para lugar nenhum na qual se move uma massa de corredores solitários, pouco preocupados com quem vai ao lado. No último mês, de acordo com Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT), um milhão e meio de pessoas tirou bilhete de ida nessa viagem chamada cocaína.
O primeiro passo
O primeiro passo é um gesto simples, tão simples como inspirar com força. O pó branco chega rapidamente à garganta, a droga entra na corrente sanguínea e os efeitos sucedem-se no espaço de segundos: os nervos perdem a capacidade de propagar impulsos, (anestesia) e as sensações desaparecem - como se o corpo flutuasse fora dele próprio. Ao mesmo tempo, explica o médico Miguel Franco, do Instituto Nacional de Medicina Legal, a droga bloqueia a recaptação de três neurotransmissores - a norepinefrina, a dopamina e a serotonina. O primeiro provoca midríase (dilatação das pupilas), vasoconstrição, hipertensão e taquicardia. A dopamina é responsável por uma sensação de euforia, um acréscimo de energia psíquica e por doses acrescidas de excitação sexual e de autoconfiança.
Xana, ainda sentada, reduz a explicação científica a duas frases que, aos 20 anos, já repetiu vezes sem conta . "Sentes-te bem. Capaz de tudo." Se a vida normal fosse uma linha recta (mais uma) num gráfico, o efeito da cocaína estaria vários pontos acima dela, ao contrário do que sucede com a heroína, eternamente no fundo. "Numa sociedade competitiva, em que se trabalha cada vez mais, num ritmo cada vez mais intenso, a cocaína é uma droga cujos efeitos parecem ajustados", reconhece João Pedro Augusto, do centro de tratamento Villa Ramadas. "Não é por acaso que é a droga da moda e que surge sempre associada a algum glamour", comenta Paula Andrade, responsável pelo Núcleo de Redução de Danos do Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT).
Num gabinete amplo e com vista para a Praça do Areeiro, em Lisboa, a responsável do IDT não evita um sorriso quando ouve o tema da reportagem. "A cocaína é, talvez, a droga mais difícil de catalogar", assegura. Uma abordagem tímida podia começar mais ou menos assim: pode ser inalada (o que se associa à vida da noite e à diversão), fumada, (com o nome de "free base", uma droga de rua usada por uma população considerada problemática) ou injectada (em conjunto com a heroína). É a segunda droga mais consumida pelos portugueses, no total e entre os jovens adultos, é mais consumida por homens do que por mulheres e o Algarve e Lisboa são as zonas com maiores prevalências de consumo. De acordo com alguns estudos, começam a surgir sinais preocupantes de consumo em festas trance - onde há poucos anos praticamente não existia.
Xana, outra vez. Agora tem 17 anos e é um sábado à tarde. A mãe saiu de casa há três anos, o pai é um toxicodependente em recuperação, a escola corre bem - "eu era óptima aluna e esses problemas com a minha mãe e o meu pai estavam perfeitamente resolvidos". É sábado à tarde e dois amigos mais velhos espalham linhas de cocaína sobre uma mesa. "Não consegui, tive medo." Passou uma semana até ser sábado outra vez. Falou com a melhor amiga e à segunda oportunidade estavam as duas diante da tal mesa. Nessa tarde, o medo não apareceu.
O primeiro passo é um gesto simples, tão simples como inspirar com força. O pó branco chega rapidamente à garganta, a droga entra na corrente sanguínea e os efeitos sucedem-se no espaço de segundos: os nervos perdem a capacidade de propagar impulsos, (anestesia) e as sensações desaparecem - como se o corpo flutuasse fora dele próprio. Ao mesmo tempo, explica o médico Miguel Franco, do Instituto Nacional de Medicina Legal, a droga bloqueia a recaptação de três neurotransmissores - a norepinefrina, a dopamina e a serotonina. O primeiro provoca midríase (dilatação das pupilas), vasoconstrição, hipertensão e taquicardia. A dopamina é responsável por uma sensação de euforia, um acréscimo de energia psíquica e por doses acrescidas de excitação sexual e de autoconfiança.
Xana, ainda sentada, reduz a explicação científica a duas frases que, aos 20 anos, já repetiu vezes sem conta . "Sentes-te bem. Capaz de tudo." Se a vida normal fosse uma linha recta (mais uma) num gráfico, o efeito da cocaína estaria vários pontos acima dela, ao contrário do que sucede com a heroína, eternamente no fundo. "Numa sociedade competitiva, em que se trabalha cada vez mais, num ritmo cada vez mais intenso, a cocaína é uma droga cujos efeitos parecem ajustados", reconhece João Pedro Augusto, do centro de tratamento Villa Ramadas. "Não é por acaso que é a droga da moda e que surge sempre associada a algum glamour", comenta Paula Andrade, responsável pelo Núcleo de Redução de Danos do Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT).
Num gabinete amplo e com vista para a Praça do Areeiro, em Lisboa, a responsável do IDT não evita um sorriso quando ouve o tema da reportagem. "A cocaína é, talvez, a droga mais difícil de catalogar", assegura. Uma abordagem tímida podia começar mais ou menos assim: pode ser inalada (o que se associa à vida da noite e à diversão), fumada, (com o nome de "free base", uma droga de rua usada por uma população considerada problemática) ou injectada (em conjunto com a heroína). É a segunda droga mais consumida pelos portugueses, no total e entre os jovens adultos, é mais consumida por homens do que por mulheres e o Algarve e Lisboa são as zonas com maiores prevalências de consumo. De acordo com alguns estudos, começam a surgir sinais preocupantes de consumo em festas trance - onde há poucos anos praticamente não existia.
Xana, outra vez. Agora tem 17 anos e é um sábado à tarde. A mãe saiu de casa há três anos, o pai é um toxicodependente em recuperação, a escola corre bem - "eu era óptima aluna e esses problemas com a minha mãe e o meu pai estavam perfeitamente resolvidos". É sábado à tarde e dois amigos mais velhos espalham linhas de cocaína sobre uma mesa. "Não consegui, tive medo." Passou uma semana até ser sábado outra vez. Falou com a melhor amiga e à segunda oportunidade estavam as duas diante da tal mesa. Nessa tarde, o medo não apareceu.
Uma vida aparentemente normal
Miguel, é hora de o apresentar, é dois anos mais velho, mas baixa a cabeça quando Xana fala, como se se ouvisse a si mesmo. E fica ali, com o cabelo oxigenado e as orelhas furadas, no cimo de uma figura toda vestida de preto e de braços cruzados. Começou mais cedo, mas continuou como se fosse normal. "Toda a gente à minha volta consumia. Como trabalhava, e ainda trabalho, nunca me faltou o dinheiro..." Nunca se viu, como um amigo seu, a passar três dias num bairro degradado a pedir 10 cêntimos para comprar uma dose. Mas viu pior, o seu rosto reflectido num espelho. "Tinha a droga à minha frente e já consumia só pela frustração de não conseguir parar de consumir."
Paula Andrade já conhece a história. Conhece piores. Tantas que já poucas a conseguem surpreender. "A cocaína é uma droga gulosa, com efeitos muito curtos", explica. Os técnicos gostam de recorrer à imagem do ioiô para descrever a vida de um consumidor de cocaína - permanentemente entre o alto e o baixo, sem nunca mais voltarem ao ponto inicial. "O resultado é que os consumidores precisam de doses cada vez mais fortes e cada vez mais depressa", resume a técnica do IDT. João Pedro Augusto, do centro de tratamento, prossegue o raciocínio. "Um consumidor de heroína tem um limite a partir do qual entra em overdose. Com a cocaína não é assim. Se a pessoa tiver um quilo", diz, por exagero, "consome um quilo. E não descansa. Está sempre a pensar que precisa de mais, e mais e mais... É muito mais complicado lidar com esta dependência".
Há outro dado importante. Hoje em dia, a maioria dos pacientes que chega a Villa Ramadas com problema de drogas chega com problemas de dependência de cocaína. Portugueses, claro, mas também espanhóis - onde a situação é considerada uma das mais graves da Europa, a par da Inglaterra, gregos, franceses e também dos países nórdicos. O Observatório Europeu estima que pelo menos 13 milhões de pessoas tenham experimentado cocaína. Destes, quatro milhões fizeram-no no último ano. Há vestígios de cocaína na maioria das notas em circulação e análises na Alemanha e em Itália revelaram níveis alarmantes nos principais rios.
Miguel, é hora de o apresentar, é dois anos mais velho, mas baixa a cabeça quando Xana fala, como se se ouvisse a si mesmo. E fica ali, com o cabelo oxigenado e as orelhas furadas, no cimo de uma figura toda vestida de preto e de braços cruzados. Começou mais cedo, mas continuou como se fosse normal. "Toda a gente à minha volta consumia. Como trabalhava, e ainda trabalho, nunca me faltou o dinheiro..." Nunca se viu, como um amigo seu, a passar três dias num bairro degradado a pedir 10 cêntimos para comprar uma dose. Mas viu pior, o seu rosto reflectido num espelho. "Tinha a droga à minha frente e já consumia só pela frustração de não conseguir parar de consumir."
Paula Andrade já conhece a história. Conhece piores. Tantas que já poucas a conseguem surpreender. "A cocaína é uma droga gulosa, com efeitos muito curtos", explica. Os técnicos gostam de recorrer à imagem do ioiô para descrever a vida de um consumidor de cocaína - permanentemente entre o alto e o baixo, sem nunca mais voltarem ao ponto inicial. "O resultado é que os consumidores precisam de doses cada vez mais fortes e cada vez mais depressa", resume a técnica do IDT. João Pedro Augusto, do centro de tratamento, prossegue o raciocínio. "Um consumidor de heroína tem um limite a partir do qual entra em overdose. Com a cocaína não é assim. Se a pessoa tiver um quilo", diz, por exagero, "consome um quilo. E não descansa. Está sempre a pensar que precisa de mais, e mais e mais... É muito mais complicado lidar com esta dependência".
Há outro dado importante. Hoje em dia, a maioria dos pacientes que chega a Villa Ramadas com problema de drogas chega com problemas de dependência de cocaína. Portugueses, claro, mas também espanhóis - onde a situação é considerada uma das mais graves da Europa, a par da Inglaterra, gregos, franceses e também dos países nórdicos. O Observatório Europeu estima que pelo menos 13 milhões de pessoas tenham experimentado cocaína. Destes, quatro milhões fizeram-no no último ano. Há vestígios de cocaína na maioria das notas em circulação e análises na Alemanha e em Itália revelaram níveis alarmantes nos principais rios.
Consumo a cair?
Ainda assim, o relatório deste ano do UNODC, organismo das Nações Unidas que monitoriza o tráfico e consumo de droga, admite que o fluxo de cocaína para a Europa pode ter começado a cair. Houve menos apreensões, os preços subiram e o grau de pureza da droga é menor - sinais de que a quantidade disponível é menor. Colômbia, Peru e Bolívia são os países de origem da maior parte da droga apreendida, enquanto a Venezuela, o Equador e o Brasil são os principais pontos de passagem, a par de alguns países africanos. A Guiné-Bissau talvez seja o caso mais conhecido. "A situação é muito grave", desabafa um elemento da PJ sobre o país que, nos últimos dois anos, entrou para a lista negra de todas as polícias do mundo como a principal plataforma giratória no tráfico de cocaína sul-americana a caminho da Europa.
O mesmo responsável da PJ lembra, no entanto, que a queda no fornecimento de cocaína para a Europa não é necessariamente uma boa notícia. "O mercado da droga é global e não há zonas vazias. Nos países do Leste, neste momento, vive-se um problema sério com a heroína. Na Rússia, há cerca de dois milhões de dependentes. Se começa a haver muita pressão sobre o tráfico de cocaína, o mercado vai mudar", analisa. A aula de economia e distribuição prossegue no Areeiro, no gabinete de Paula Andrade, no 5º andar. "A heroína parece estar a ressurgir entre nós. Há cada vez mais, de melhor qualidade e mais barata, o que pode vir a ser um problema." Uma conta simples de fazer, já que a última década tem sido generosa para os plantadores de papoila no Afeganistão. E nem a guerra no país parece capaz de travar a acção das redes de tráfico que, admite a ONU, poderão ter armazenado ópio e heroína suficientes para fornecer o mercado durante dois anos.
José, 56 anos, entende bem o funcionamento do mercado. Por isso, e também graças às companhias certas, nunca precisou de procurar muito para encontrar droga. "Era tão fácil que, quando saí da prisão, mandaram-me um quilo para casa", conta, tranquilo. Foi há 15 anos, quando ainda tinha três carros, conhecimentos, dinheiro para tudo e pouca vontade de parar. Quando ainda não se tinha casado e ainda não era pai. Um dia, para se casar e ter uma filha, decidiu que tinha de parar. "Passei um mês trancado em casa. Quando saí, parecia um esqueleto, parecia que estava morto. Mas não. Estava mais vivo do que nunca." Nesse dia, meteu-se no carro e guiou até ao local onde tinha a droga. Ao fim da tarde, num pinhal, abriu o saco e deixou que o vento levasse milhares de euros de um pó branco em direcção ao mar.
A cocaína pode ter esse efeito, o de tornar incríveis todas as histórias em que surge. Em Outubro de 2006, em Peniche, começaram a dar à costa pacotes de cocaína - resultado de um desembarque mal sucedido ao largo da costa portuguesa. Nos meses seguintes, dois militares da GNR foram presos por desviarem quatro quilos de droga e consumidores de todo o país rumaram à cidade. Cinco anos antes, nos Açores, o mar trouxe carga igual e a cocaína começou a vender-se à chávena. Nesses dias de loucura, um casal de idosos decidiu fritar peixe para o almoço, mas em vez de farinha usou cocaína com um grau de pureza a rondar os 90 por cento. "Um familiar tinha deixado o pacote lá em casa", conta um elemento das equipas de rua.
Ainda assim, o relatório deste ano do UNODC, organismo das Nações Unidas que monitoriza o tráfico e consumo de droga, admite que o fluxo de cocaína para a Europa pode ter começado a cair. Houve menos apreensões, os preços subiram e o grau de pureza da droga é menor - sinais de que a quantidade disponível é menor. Colômbia, Peru e Bolívia são os países de origem da maior parte da droga apreendida, enquanto a Venezuela, o Equador e o Brasil são os principais pontos de passagem, a par de alguns países africanos. A Guiné-Bissau talvez seja o caso mais conhecido. "A situação é muito grave", desabafa um elemento da PJ sobre o país que, nos últimos dois anos, entrou para a lista negra de todas as polícias do mundo como a principal plataforma giratória no tráfico de cocaína sul-americana a caminho da Europa.
O mesmo responsável da PJ lembra, no entanto, que a queda no fornecimento de cocaína para a Europa não é necessariamente uma boa notícia. "O mercado da droga é global e não há zonas vazias. Nos países do Leste, neste momento, vive-se um problema sério com a heroína. Na Rússia, há cerca de dois milhões de dependentes. Se começa a haver muita pressão sobre o tráfico de cocaína, o mercado vai mudar", analisa. A aula de economia e distribuição prossegue no Areeiro, no gabinete de Paula Andrade, no 5º andar. "A heroína parece estar a ressurgir entre nós. Há cada vez mais, de melhor qualidade e mais barata, o que pode vir a ser um problema." Uma conta simples de fazer, já que a última década tem sido generosa para os plantadores de papoila no Afeganistão. E nem a guerra no país parece capaz de travar a acção das redes de tráfico que, admite a ONU, poderão ter armazenado ópio e heroína suficientes para fornecer o mercado durante dois anos.
José, 56 anos, entende bem o funcionamento do mercado. Por isso, e também graças às companhias certas, nunca precisou de procurar muito para encontrar droga. "Era tão fácil que, quando saí da prisão, mandaram-me um quilo para casa", conta, tranquilo. Foi há 15 anos, quando ainda tinha três carros, conhecimentos, dinheiro para tudo e pouca vontade de parar. Quando ainda não se tinha casado e ainda não era pai. Um dia, para se casar e ter uma filha, decidiu que tinha de parar. "Passei um mês trancado em casa. Quando saí, parecia um esqueleto, parecia que estava morto. Mas não. Estava mais vivo do que nunca." Nesse dia, meteu-se no carro e guiou até ao local onde tinha a droga. Ao fim da tarde, num pinhal, abriu o saco e deixou que o vento levasse milhares de euros de um pó branco em direcção ao mar.
A cocaína pode ter esse efeito, o de tornar incríveis todas as histórias em que surge. Em Outubro de 2006, em Peniche, começaram a dar à costa pacotes de cocaína - resultado de um desembarque mal sucedido ao largo da costa portuguesa. Nos meses seguintes, dois militares da GNR foram presos por desviarem quatro quilos de droga e consumidores de todo o país rumaram à cidade. Cinco anos antes, nos Açores, o mar trouxe carga igual e a cocaína começou a vender-se à chávena. Nesses dias de loucura, um casal de idosos decidiu fritar peixe para o almoço, mas em vez de farinha usou cocaína com um grau de pureza a rondar os 90 por cento. "Um familiar tinha deixado o pacote lá em casa", conta um elemento das equipas de rua.
Como se não houvesse amanhã
Os técnicos que contactam com os toxicodependentes de rua falam de um mundo que não parece real. "Há uma imagem de glamour da coca, sempre associada às classes mais altas", diz Paula Andrade. "Mas há um outro lado, o dos consumidores de 'base', de cocaína fumada, que vive incógnito." A base é preparada a partir da cocaína, aquecendo-a com água e químicos, e é fumada. Os efeitos são semelhantes aos da cocaína, mas ainda mais rápidos e intensos. A probabilidade de uma overdose cresce exponencialmente, tal como sobem as infecções nos brônquios, as paragens respiratórias, as hemorragias cerebrais e os enfartes do miocárdio.
Angel, um espanhol de 39 anos a ser tratado em Portugal, estranha quando tem de olhar para o passado. Fala dele próprio como se fosse outra pessoa, alguém que 'snifava' e fumava cocaína "como se todos os dias fossem o último dia" e alguns estiveram perto de o ser. "Passei a faculdade toda em festa, senti-me várias vezes no fundo, mas, quando acabou, já com alguns tratamentos em cima, abrandei. Quando comecei a trabalhar, meti uma vez e jurei que não o voltaria a fazer. Podia ter jurado qualquer coisa. Era igual. O que me custa agora é não saber como é a vida sem drogas. Os meus colegas de escola têm famílias, filhos, problemas e não precisam da droga." Angel, o espanhol de 39 anos, está à procura de uma segunda oportunidade.
Os técnicos que contactam com os toxicodependentes de rua falam de um mundo que não parece real. "Há uma imagem de glamour da coca, sempre associada às classes mais altas", diz Paula Andrade. "Mas há um outro lado, o dos consumidores de 'base', de cocaína fumada, que vive incógnito." A base é preparada a partir da cocaína, aquecendo-a com água e químicos, e é fumada. Os efeitos são semelhantes aos da cocaína, mas ainda mais rápidos e intensos. A probabilidade de uma overdose cresce exponencialmente, tal como sobem as infecções nos brônquios, as paragens respiratórias, as hemorragias cerebrais e os enfartes do miocárdio.
Angel, um espanhol de 39 anos a ser tratado em Portugal, estranha quando tem de olhar para o passado. Fala dele próprio como se fosse outra pessoa, alguém que 'snifava' e fumava cocaína "como se todos os dias fossem o último dia" e alguns estiveram perto de o ser. "Passei a faculdade toda em festa, senti-me várias vezes no fundo, mas, quando acabou, já com alguns tratamentos em cima, abrandei. Quando comecei a trabalhar, meti uma vez e jurei que não o voltaria a fazer. Podia ter jurado qualquer coisa. Era igual. O que me custa agora é não saber como é a vida sem drogas. Os meus colegas de escola têm famílias, filhos, problemas e não precisam da droga." Angel, o espanhol de 39 anos, está à procura de uma segunda oportunidade.
150 anos de cocaína
A data talvez passe despercebida, mas fará 150 anos em 2010 que um investigador da Universidade de Gottingen, no coração da Alemanha, isolou um alcalóide psicoactivo da folha da coca. Albert Niemann usou álcool, ácido sulfúrico, éter e bicarbonato de sódio para criar uma substância a que chamou cocaína. Desde então, foi recomendada por médicos, misturada em vinho (e bebida pela realeza europeia), usada em refrigerantes, apregoada como afrodisíaco e desinibidor de personalidade e objecto de um tratado de Freud (Uber coca). As primeiras restrições ao seu uso surgiram cerca de 1920, nos Estados Unidos da América. O mercado negro cresceu e os cartéis tornaram-se verdadeiros actores da cena internacional.
Hoje, as folhas da coca continuam a crescer na América do Sul e a ser tratadas em laboratórios clandestinos, com toda a espécie de químicos, até se conseguir o produto final. Milhares de milhões de euros circulam todos os dias em sentido contrário ao das toneladas despachadas - em contentores, camiões, barcos e no interior do corpo das 'mulas' (pessoas pagas para transportar pequenas quantidades de droga). Nos mercados de destino, mistura-se a coca com pó de talco, açúcar, vitima C, leite em pó. Nova entrega, mais dinheiro. Que depois falta, sem poder faltar, a quem compra. Mas parece que toda a gente compra e por isso é preciso comprar mais e mais. Mesmo que não haja dinheiro, haverá sempre uma solução.
Xana coça o queixo e tosse. A linha que escolheu naquele sábado era igual à do lado. E às outras duas mais ao lado. Começava na tal sala, com a melhor amiga e os dois rapazes mais velhos, por entre gargalhadas e conversas parvas. Depois vinham as festas, os desfiles, os anúncios na televisão, os concertos, a sua banda, as festas, a fama. Como é que eu, Xana, rapariga bonita, deixei escapar o mundo por entre as mãos?
(Este artigo foi publicado da Revista Única de 21 de Novembro)
A data talvez passe despercebida, mas fará 150 anos em 2010 que um investigador da Universidade de Gottingen, no coração da Alemanha, isolou um alcalóide psicoactivo da folha da coca. Albert Niemann usou álcool, ácido sulfúrico, éter e bicarbonato de sódio para criar uma substância a que chamou cocaína. Desde então, foi recomendada por médicos, misturada em vinho (e bebida pela realeza europeia), usada em refrigerantes, apregoada como afrodisíaco e desinibidor de personalidade e objecto de um tratado de Freud (Uber coca). As primeiras restrições ao seu uso surgiram cerca de 1920, nos Estados Unidos da América. O mercado negro cresceu e os cartéis tornaram-se verdadeiros actores da cena internacional.
Hoje, as folhas da coca continuam a crescer na América do Sul e a ser tratadas em laboratórios clandestinos, com toda a espécie de químicos, até se conseguir o produto final. Milhares de milhões de euros circulam todos os dias em sentido contrário ao das toneladas despachadas - em contentores, camiões, barcos e no interior do corpo das 'mulas' (pessoas pagas para transportar pequenas quantidades de droga). Nos mercados de destino, mistura-se a coca com pó de talco, açúcar, vitima C, leite em pó. Nova entrega, mais dinheiro. Que depois falta, sem poder faltar, a quem compra. Mas parece que toda a gente compra e por isso é preciso comprar mais e mais. Mesmo que não haja dinheiro, haverá sempre uma solução.
Xana coça o queixo e tosse. A linha que escolheu naquele sábado era igual à do lado. E às outras duas mais ao lado. Começava na tal sala, com a melhor amiga e os dois rapazes mais velhos, por entre gargalhadas e conversas parvas. Depois vinham as festas, os desfiles, os anúncios na televisão, os concertos, a sua banda, as festas, a fama. Como é que eu, Xana, rapariga bonita, deixei escapar o mundo por entre as mãos?
(Este artigo foi publicado da Revista Única de 21 de Novembro)
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